Entre 2014 e 2023, o volume de recursos destinados à saúde pública por meio de emendas parlamentares registrou crescimento expressivo de 371%, passando de R$ 4,9 bilhões em 2014 para R$ 23 bilhões, em 2023. Esse aumento impacta diretamente a forma como os recursos são alocados no Sistema Único de Saúde (SUS) e gera preocupações sobre a eficiência e a equidade de sua distribuição pelo país.
Nesse mesmo período, a participação do Ministério da Saúde (MS) na destinação de recursos para ações e serviços públicos de saúde (ASPS), incluindo despesas obrigatórias, caiu de 96,8% para 87,2%, enquanto a alocação de recursos por emendas parlamentares saltou de 3,2% para 12,8%. Os dados foram divulgados nesta terça-feira (15), no estudo Financiamento Federal de Ações e Serviços Públicos de Saúde por Emendas Parlamentares e Suas Implicações para a Regionalização da Saúde, de Fabiola Sulpino Vieira, especialista em políticas públicas e gestão governamental na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A pesquisa constata, nesses dez anos analisados, uma significativa redução de poder do MS para definir a destinação dos recursos ao financiamento de gastos discricionários em ASPS. Em 2014, a participação das emendas no total de despesas discricionárias (R$ 26,2 bilhões) foi de 18,6%. Essa participação aumentou para 52,5% (R$ 43,7 bilhões) em 2023. Ou seja, no último ano, o governo federal pôde decidir a alocação de menos da metade das despesas discricionárias com ASPS (47,5%).
As despesas discricionárias são aquelas em que o Ministério da Saúde tem liberdade para definir como alocar o recurso, ao contrário das despesas obrigatórias, que são fixadas por lei, como salários de servidores e benefícios da previdência, por exemplo. No Brasil, o SUS opera com um planejamento descentralizado, envolvendo a pactuação de recursos e serviços entre os municípios e estados, de acordo com as necessidades regionais.
Já a alocação de recursos por emendas parlamentares escapa dessa lógica de planejamento. Ou seja, em vez de serem distribuídos com base nas necessidades acordadas nas Comissões Intergestores Bipartite (CIB) e Tripartite (CIT), os recursos via emendas parlamentares são direcionados por critérios políticos, sem considerar o planejamento do SUS, o que resulta numa distribuição desigual dos recursos disponíveis.
“Essa situação afeta negativamente a regionalização do SUS, que é organizada em regiões e macrorregiões de saúde, justamente para garantir o acesso universal e igualitário aos serviços, desde os mais básicos, aos de alta complexidade, como cirurgias e transplantes. A forma como as emendas parlamentares estão sendo alocadas para a saúde pública gera desigualdades na oferta de serviços, especialmente em regiões mais vulneráveis", afirma Fabiola Vieira.
Norte e Nordeste
De acordo com a especialista em políticas públicas e gestão governamental, embora os parlamentares destinem grande parte desses recursos para as regiões Norte e Nordeste – áreas que historicamente enfrentam déficits na oferta de serviços de saúde –, a maioria dos recursos é designada à atenção primária, o que ocasiona descompasso na saúde, pois os principais gargalos estão na média e alta complexidade, que demandam serviços especializados, como exames e cirurgias.
Além disso, emendas parlamentares individuais não podem ser usadas para o pagamento de pessoal, o que limita a capacidade dos municípios, especialmente os pequenos, de utilizar adequadamente os recursos recebidos. Isso pode resultar em subutilização ou má distribuição, agravando a desigualdade na oferta de serviços de saúde.
“O financiamento por emendas parlamentares dificulta o planejamento de longo prazo e ameaça a sustentabilidade dos serviços oferecidos por estados e municípios, que precisam de um fluxo estável de recursos para manter a continuidade do atendimento”, destaca a pesquisadora.
O estudo sugere a necessidade de estabelecer limites para o uso de emendas parlamentares nas despesas com ações e serviços públicos de saúde, de modo a garantir que esses recursos sejam alocados de forma equitativa e eficiente. No entanto, mudanças dessa natureza enfrentam barreiras políticas, já que demandariam uma reformulação no comportamento dos parlamentares e na forma como o sistema político brasileiro atua em relação ao financiamento da saúde pública.
A implementação de estudos de avaliação de impacto também é recomendada para medir a efetividade das emendas parlamentares no setor, a fim de ajustar o modelo atual e garantir que a destinação de recursos atenda, de fato, às necessidades da população.
Enquanto isso, o crescimento das emendas parlamentares e a consequente diminuição do controle do MS sobre o orçamento do SUS podem colocar em risco a universalidade e a integralidade do atendimento, princípios fundamentais do sistema de saúde brasileiro. “Estudos adicionais são necessários para avaliar o impacto real dessas emendas na saúde da população. Até o momento, os dados indicam que a destinação descoordenada dos recursos federais está aprofundando as desigualdades regionais e comprometendo a eficiência do SUS na garantia do acesso universal e integral aos serviços de saúde”, finaliza Fabiola Vieira.
Fonte: ipea.gov